Um clássico latino-americano entre nós
Por Nildo Ouriques – Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais e membro do IELA-UFSC.
19.12.2011 – A lenta e inexorável latino-americanização da cultura brasileira recebeu notável impulso com a publicação no Brasil da obra magna de Jorge Abelardo Ramos, História da nação latino-americana, iniciativa mais que oportuna da Editora Insular, de Florianópolis. El “colorado Ramos”, como era conhecido Jorge Abelardo, é um dos potentes intelectuais argentinos, membro de uma geração autodidata e portadora de enorme cultura e cativante estilo literário. Expulso da escola secundária por motivos políticos, nosso personagem ganhou o título de “notório saber” e terminou dando aulas de História na Faculdade de Filosofia da Universidade de Buenos Aires. Mas nunca foi um universitário no sentido comum, fato que lhe conferiu enorme vantagem. Suas obras seguem sendo publicadas no país vizinho e encontram na juventude terreno fértil de leitores curiosos pelo conhecimento desta inesgotável figura. Na mesma medida em que sua obra ainda mantém prestígio entre a juventude militante, é preciso também dizer que Abelardo Ramos recebeu tratamento de Estado quando em 2006 o congresso nacional editou no país vizinho cinco tomos com parte importante de sua vasta interpretação da vida argentina, lamentavelmente ainda desconhecida pelos intelectuais no Brasil e também praticamente inexistente para nosso mundo universitário. Há uma semana, na recente reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos (CELAC) realizada em Caracas, a presidente Cristina Kirchner presenteou Dona Dilma com um exemplar da edição brasileira da obra deste grande intelectual argentino. A gentileza da presidente Cristina é simbólica e sutil. É como se alguém indicasse a existência de uma bela rosa no seu jardim, até então, desconhecida por você.
Ninguém poderá estudar seriamente a América Latina sem devorar imediatamente este poderoso livro. Não estou seguro se existe outro com tamanha erudição, alcance e profundidade. História da nação latino-americana apareceu em 1968 e desde então não cessaram as edições em espanhol. No Brasil, muitas gerações ficaram marcadas pela leitura de As veias abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano, livro que não deixa de ter importância ainda hoje para todo aquele que quer iniciar-se num certo caldo de cultura das idéias latino-americanas. Contudo, História da nação latino-americana tem outra extração, ambição distinta. É um livro que cobre 500 anos de história e nem por isso é vago; ao contrário, não somente revela a solidez autodidata de um grande intelectual argentino revalorizado numa conjuntura em que amplas massas se movem novamente na direção de fortalecer a identidade de nosso povo comum, mas, sobretudo, uma prova incontestável da qualidade dos estudos latino-americanos que começam a ganhar cidadania no Brasil. Enfim, o livro é uma prova irrefutável que aquele tempo no qual “estávamos de costas para América Latina” ficou, definitivamente, para trás.
Abelardo Ramos, legitimo representante do pensamento crítico latino-americano, conhecia profundamente a Europa. É obvio seu escancarado apreço pela Espanha, uma espécie de orgulho que também podemos encontrar no culto que grande parte da intelectualidade mexicana alimenta em relação ao que não sem ambigüidade carinhosa denominam “madre pátria”. Para nós brasileiros, sempre tão distantes de Portugal quanto ignorantes da história européia – embora aduladores de quase tudo o que de lá procede – não deixa de ser curioso observar Abelardo Ramos tratar a Espanha como “heróica” depois de vasculhar cada intriga do poder burguês e revelar todas as misérias de seus personagens mais importantes como quem comenta sobre os detalhes sórdidos da vida íntima de seus vizinhos mais próximos.
Trotskista desde sempre, conciliou a militância e o refinamento dos grandes intelectuais socialistas argentinos. Em 1973 conquistou um milhão de votos na disputa presidencial ocorrida naqueles turbulentos e maravilhosos anos que a Argentina viveu antes do golpe genocida de 1976 do qual todos nós ainda não nos recuperamos plenamente. Certamente não foi fácil para um homem de militância trotskista romper com o eurocentrismo inerente a certa perspectiva marxista, lamentavelmente dominante no continente. Abelardo Ramos soube tratar com enorme desenvoltura as difíceis exigências do rigoroso método marxiano com a complexa, intrigada e sui generis história da América Latina que em nada repete o “modelo clássico” dominante na cabeça do analista colonizado. Deste talento e capacidade analítica, decorre a maestria com a qual ele revela a extração de classe e os propósitos de cada personagem da vida latino-americana e, em especial, da Argentina. Também por isso, a análise de classe de cada personagem esta devidamente amarrada à trama mundial comandada pela Europa e, mais tarde, pelos Estados Unidos. Um Rivadavia, por exemplo, é pintado como expressão acabada da política e mentalidade sipaia, da mesma forma que Mitre é enquadrado sem a grandeza que a elite portenha ainda o embala. Ambos, mera expressão dos interesses comerciais europeus, responsáveis não somente por nossa balcanização, mas também pelo atraso industrial em relação aos centros metropolitanos. No Brasil, somente Alberto Guerreiro Ramos – de quem Abelardo leu Mito e verdade sobre a revolução brasileira – escreveu sobre os personagens brasileiros com semelhante estilo e precisão, revelando os motivos inconfessáveis a luz do dia que levou a elite erguer estátuas em homenagem a personagens nada dignos.
Nesta magnífica obra, a luta pela independência da América Latina é apresentada magistralmente num quadro onde Bolívar ganha, de maneira merecida, papel central. Cada momento histórico – da extraordinária batalha de Ayacucho ao declínio de seu poder, com a conseqüente completa solidão e impotência do Libertador – é reconstituído com grande precisão, mas também, sem perder-se em detalhes. Não há neste texto o registro do heroísmo aberrante, desnecessário, mas nos inteiramos da importância e o talento da saga bolivariana e seus principais homens: o próprio Bolívar e seu mais fiel seguidor, Sucre. Todos aqueles que se deliciaram na leitura de O general em seu labirinto, de Gabriel García Marquez, ficarão maravilhados com a recuperação dos dias de glória e da completa ruína de nosso mais importante herói latino-americano que, não por esta condição, escapa da sutil crítica. Quando os interesses da elite crioula fundaram a Bolívia – perversa homenagem que somou na balcanização – Abelardo Ramos indica que o mesmíssimo Simón Bolívar terminou por aceitar esta traição a seu projeto unificador, ainda que a independência de Peru e Bolívia representasse também certa oposição aos interesses portenhos ainda mais entreguistas e pró-imperialistas que seus aliados situados em Lima e La Paz. A melancólica confissão de derrota do próprio Bolívar é documentada como uma lição histórica sobre as circunstâncias que levaram um homem dotado de grande talento admitir que realizava um pacto contra sua própria causa.
Ao aproximar-se de seus derradeiros dias em Santa Marta, quando tinha apenas 47 anos de idade e aparentava um sexagenário, Bolívar ainda recebeu a declaração de que era um proscrito na Venezuela e foi declarado por Paez como um “traidor da Pátria” em sua própria terra natal, Carabobo. Glória e miséria. Poder e abandono. A saga bolivariana e nosso futuro escrito em 531 páginas que vaticinam sobre o destino de povos desunidos, de nossa nacionalidade minúscula e das imensas possibilidades da Pátria Grande que ainda teremos que construir ou, tragicamente, perecer.
História da nação latino-americana é também um tratado crítico da diplomacia e das relações internacionais, sem o marasmo e a alienação dos manuais que mutilam a inteligência universitária brasileira. Samuel Pinheiro Guimarães deveria recomendar o livro como leitura obrigatória no Itamaraty, pois se trata de um volume absolutamente necessário para entender a trama histórica que criou conflitos desnecessários e antagonismos absurdos entre países vizinhos, divididos apenas pela falta de consciência de sua história e destino comum, de seu presente miserável e a balcanização que nos condena ao raquitismo na disputa do poder mundial. É também um poderoso antídoto contra o esnobismo de uma diplomacia que apenas começa a descobrir que realmente pertence à Pátria Grande, neste lento – demasiadamente lento, diria – processo de descolonização iniciado pelo valente e lúcido diplomata carioca. Além da utilidade para os diplomatas, História da nação latino-americana presta-se também a leitura do grande público, pois certamente não está proibido ao sindicalista, aos economistas, médicos, jornalistas ou engenheiros vida inteligente; o livro concilia o conhecimento enciclopédico de Abelardo Ramos sobre nossa história com o refinado estilo literário que orienta sua grande obra. Impecável.
Para nós brasileiros, acostumados na arte de espetar nossos grandes personagens em favor de figuras bem menores, porém modernas e simpáticas, Abelardo Ramos nos dá uma pista, um caminho que todos deveríamos trilhar, a partir da identificação da extração de classe de cada personagem histórico, seu projeto político e as razões tanto do êxito quanto do fracasso. A leitura da magna obra de Abelardo Ramos é um antídoto contra o esporte preferido da intelectualidade sipaia, conceito fundamental em sua narrativa, pois explica com precisão o “pelego” nacional tanto no terreno das idéias quanto no dos interesses materiais, aquela mesma figura tratada pelos centro-americanos como “vende-pátria”; enfim, aquele conhecido personagem disposto a vender a nação sem rodeios diante de qualquer possibilidade de ganho imediato e mesquinho.
A relação com o nacionalismo é mesmo um teste definitivo para os marxistas na periferia capitalista; um teste, diga-se, no qual raramente os intelectuais de esquerda exibem suas melhores qualidades teóricas e capacidade política. No Brasil, os marxistas e os nacionalistas representam duas correntes antagonizadas, feitos água e azeite. Quem ganha com isso é a classe dominante brasileira, sempre disposta a assumir a orientação de Washington como expressão de tudo que é moderno e democrático, na linha do conhecido bordão segundo o qual o que é “bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Há, de fato, um batalhão de acadêmicos sipaios, dispostos a dourar a pílula, ávidos por ocupar 15 minutos de fama no competitivo terreno da vassalagem intelectual.
Em conseqüência, o anti-imperialismo da esquerda brasileira também se especializou em apresentar-se como anti-nacionalismo. Nossa esquerda – ao contrário de outros países latino-americanos – submeteu-se docilmente a chantagem da classe dominante, e reluta em adotar uma conduta nacionalista. Submetida a hegemonia burguesa, grande parte da esquerda considera que a orientação nacionalista é, necessariamente, sinônimo de “populismo” e, seja lá o que o conceito possa representar, a conseqüência necessária é a adoção da conduta eurocêntrica simulada como “universalista”. Com esta operação, a esquerda admite seus pecados e repele toda aproximação nacional com as classes subalternas. Na historiografia, terreno fértil para perceber as virtudes da luta nacional, é onde foi mais longe o anti-nacionalismo da esquerda brasileira, ao ponto de que Lula, somente quando se tornou presidente é que reivindicou a herança getulista, anteriormente considerada pelo PT como produto do estado patrimonialista e populista…
Na condição de intelectual com dupla determinação – nacionalista e socialista – Abelardo Ramos consegue dar às grandes figuras políticas de nosso tempo – Bolívar e Sucre ou Perón e Vargas – a exata dimensão de seu necessário resgate, um caminho pelo qual seu marxismo se nacionaliza, se volve argentino e genuinamente latino-americano. Jorge Enea Spilimbergo, a quem conheci em Florianópolis pela mão do editor e amigo Nelson Rolim de Moura, era outra figura que pertencia ao circulo do “Colorado Ramos” nas lidas políticas e no combate teórico que ainda estamos realizando para latino-americanizar o marxismo em nosso continente. Autor de “A questão nacional em Marx”, (Editora Insular, 2002) “Spili” – como era carinhosamente chamado pelos íntimos, é autor de livro precioso e necessário para uma esquerda acostumada a supor que Londres ainda é a terra que possui o maior número de intelectuais marxistas por metro quadrado, como se lá estivesse realmente a fina flor do pensamento de esquerda mundial… O que dizer?! Pois é parte desta turma que estamos começando a conhecer e admirar no Brasil, aproximando não somente o Brasil da Argentina, mas a partir desta relação, entender os caminhos que nos devem levar à construção interrompida da Pátria Grande.
O conceito de “nação-latino-americana” sustenta sua vasta e rica recuperação da memória nacional latino-americana, de tal sorte que Abelardo observa os acontecimentos dos países latino-americanos como se fosse mera história regional, parte da história da nação latino-americana balcanizada em função dos interesses das potencias dominantes e de elites crioulas rapazes. Poderíamos ter algo mais original diante de nossos olhos? Para aqueles que rejeitam a idéia de uma Pátria Grande, sem mesmo dedicar à sua análise alguns minutos, seria oportuno recordar a opinião de Gilberto Freyre, um consentido tanto das letras quanto das elites nacionais. A respeito da presença de Roquete Pinto no Paraguai, Gilberto Freyre escreveu em 1942 que “caminhamos para o dia em que a guerra com o Paraguai será lembrada quase como uma guerra civil – tantas são as afinidades que tendem a nos aproximar.” Ora, se a guerra contra o Paraguai será lembrada como uma guerra civil, então ele obviamente supõem, ainda que inconscientemente, a existência de uma pátria comum, esta mesma que Abelardo Ramos denomina Pátria Grande ou Nação latino-americana e, que, a nós brasileiros, ainda soa como utopia desnecessária ou inconveniente. Contudo, esta advertência de Gilberto Freyre tem sido sistematicamente desconsiderada pelo espírito acadêmico embalado por nossos principais universitários…
Filiado a tradição clássica do marxismo europeu na interpretação do desenvolvimento desigual e combinado – conceito tão caro no marxismo crítico – Abelardo caracteriza nossos países como semi-coloniais, evitando o conceito de dependência ou de subdesenvolvimento. Também por isso, logrou consistente exposição da questão nacional a partir de Marx e de seu contexto histórico, lições ainda completamente desconhecidas para as correntes socialistas brasileiras para quem tudo aparecerá como uma incrível novidade nesta altura da história moderna! Trata-se de uma crítica devastadora ao caráter eurocêntrico que muitas correntes marxianas ainda fortalecem e razão pela qual permanecem cada dia mais afastadas das amplas massas oprimidas e exploradas em nosso país. As limitações de Marx são devidamente recuperadas, contextualizadas e elaboradas com tal vigor que abrem, de fato, uma linha de pesquisa que ainda não foi levada a sério por nossa esquerda. Na mesma linha, o debate no interior da Internacional Comunista também é recuperado e podemos observar a grandeza da atuação política e teórica de Manuel Ugarte exibida nos fóruns onde imperava Lenin e Trotsky.
Afinal, o internacionalismo de Marx sepultou ou abriu o espaço para um debate sério e rigoroso acerca da questão nacional? É tão fecunda a resposta do “Colorado” Ramos que neste livro lançado em 1968 ele escreveu: “A palavra socialismo na América Latina deve se ligar intimamente à ressonância moderna de Bolívar”. É ou não um “visionário”?
História da nação latino-americana é o primeiro livro de Abelardo Ramos traduzido ao português. Não tenho a menor dúvida de seu êxito e tampouco que a ousadia editorial de Nelson Rolim esta abrindo uma nova perspectiva que mais cedo do que tarde será adotado também por outras editoras. Não posso ocultar certo orgulho provinciano pelo fato de que a Insular, de Florianópolis, assuma a vanguarda nacional no terreno da divulgação do que temos de melhor no pensamento latino-americano. O brasileiro está cada dia mais aberto para nossa cultura comum – a cultura latino-americana – razão pela qual tenho completo otimismo sobre o destino do livro e o impacto em nosso país. Eu confesso certa revanche contra meus amigos latino-americanos que, não sem razão, sempre reclamam do descompasso brasileiro em relação ao ritmo das transformações que ocorrem em outros países; na defensiva, eu sempre argumentei que o Brasil se move, mas lentamente. Com seu passo de elefante o país ajudará com vigor este movimento de recuperação do nosso passado comum, nossa identidade e a luta pela Segunda Emancipação, sem a qual estaremos inapelavelmente condenados ao fracasso.
História da Nação Latino-Americana permanecerá entre nós com repetidas edições, marcando época. Recomendo a todos o que disse para minha pequena e adorável Júlia Erêndira: diante de um grande autor, não ajuda muito ler apenas os livros considerados mais importantes ou influentes. É preciso começar logo pela obra completa.